As ondas bravias, o mar encapelado, a noite
escura da vida ( Evangelho de Mateus
14.22-33), se apresentam a cada passo como obstáculos que podem induzir à
insegurança, ao desalento e ao medo do fracasso. Pior ainda: podem induzir-nos
a acreditar num Deus silencioso, mas satisfeito com a adoração interesseira. A
visão que a Bíblia oferece nos convoca a fazer uma revisão da vida de fé.
Ou será
que preferiremos manter nossa visão religiosa do mundo, preocupados com
afirmações sobre a irreversibilidade do mal, ou sobre a luta entre “Deus e o
diabo” (como no cinema de Glauber Rocha que retrata o universo da superstição
religiosa no Nordeste brasileiro, impedimento às transformações sociais)?
No evangelho pode-se perguntar sobre o
silêncio de Deus a respeito dos esmagamentos do mundo faminto de justiça,
triturado nas exclusões e opressões. Deus realmente silencia diante das
desigualdades e das injustiças? Os tripulantes do barco em perigo gritam por
socorro. Precisam da manifestação de Deus.
A tempestade, a noite escura, coisas que
místicos e não-místicos experimentam, são perigos e silêncios insuportáveis.
Sempre! Jesus, presença de Deus entre os homens, compartilha nossos temores,
medos, inseguranças, enquanto instila fé e segurança na ação de Deus. Jesus
caminha sobre o mar, desprezando os riscos religiosos, mitológicos, da
superstição determinista que cerca o homem e a mulher, o ser criado entregue ao
fatalismo e à irreversibilidade do mal.
Os antigos consideravam o mar como o
lugar onde habitavam monstros incontroláveis (no Antigo Testamento,
freqüentemente Yahweh é encontrado em luta primordial contra monstros
draconianos, habitantes do mar. Yahweh se sobrepõe a yammú -- monstro do mar --
em razão das condições precárias, injustiças desde os tempos primordiais, no
mundo criado; a Bíblia vai referir-se à necessidade de uma “uma nova criação”,
onde o mar não mais existe). Sob contextos mitológicos, fundamentalistas
preferem situar essas figuras para identificar realidades do “mundo celestial”,
espiritual, literalmente. Com desenvoltura se fala do “diabo”, de “satã”, de
“satanás” e seus supostos disfarces.
Crenças ancestrais, dualistas, e suas
cosmogonias dominam o universo da superstição no ambiente fundamentalista. A
cosmogonia bíblica original, porém, dará considerável importância aos símbolos
mitológicos que promovem o caos, ou que minimamente neles estão embutidos. A
diferença está num aspecto iniludível: todas essas forças, sem exceção, são
derrotadas pelo Filho do homem, e não há que se esperar, de Cristo, qualquer
vitória a acrescentar-se sobre sobre as forças do caos. Cristo já reina acima
de todos os poderes do mal, diz a Bíblia.
Deus apresenta-se em Jesus Cristo como
libertador dos determinismos sociais, políticos, e até dos determinismos
biológicos. É um conforto existencial indispensável para homens e mulheres angustiados, inseguros, temerosos. Não
podemos exigir mais do que a certeza de um mundo transformado, na manifestação
de Deus em Jesus. O ensinamento essencial de Jesus aponta: Deus está no mesmo
barco, conosco. Deus está ao lado dos que sofrem violência; dos que são
excluídos do mundo privilegiado.
Debaixo de um silêncio sutil, somos
chamados a buscar forças na fé e na confiança sobre os atos de Deus; somos
convidados a lutar contra elementos adversos e a “caminhar sobre as ondas”,
como Jesus, debaixo de tempestades, dentro da noite escura do mundo excludente,
violento, desigual.
Contudo devemos abrir os olhos e a
mente. Jesus caminha por cima das águas bravias que escondem os monstros
horripilantes da injustiça, do desrespeito aos direitos fundamentais do homem e
da mulher, da fome, da miséria e da violência. Crenças religiosas e
superstições sufocam a fé e a confiança na obra salvadora de Deus. Não é uma
história boa para se contar às vítimas da monstruosidade explícita no cotidiano
da pobreza e da miséria. Esses monstros, longe de estar escondidos nos mares
profundos, permanecem à luz do dia como uma terrível ameaça contra o reinado de Deus. Jesus nos convida a navegar sem temor ou
tremor sobre os mares da vida.
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